Leituras simbólicas do corpo na pandemia

Gosto de me saber corpo. Muitas e muitos exercitam o corpo, mas vivê-lo é outra coisa. Assim, sempre que estou doente, volto-me à corporeidade para ler simbolicamente o que, da própria experiência da enfermidade, posso aprender. Pode haver em nós algo para além de desarranjo fisiológico. 

Sendo budista, sou sensibilizado pela leitura de uma obra de um homem cristão: "Corpo - território do sagrado", do Eduardo Evaristo de Miranda. O autor apresenta-nos o corpo como a potência de uma árvore em que o humano se realiza: das suas raízes, os pés/pernas, ao mundo espiritual, na cabeça, onde se dá a imaginação, o pensamento, a comunicação pela palavra etc. 

Nos dias em que vivemos, chama-me a atenção, primeiro, a privação do caminhar. As pernas são aquilo que sustenta a interação de nosso corpo social. Mães e pais  se esforçam em nos ajudar a estarmos em pé. Porém, somente no caminho de quem deixa a casa familiar se inicia a nossa própria jornada: nós no mundo.

Hoje, impossibilitados desta interação livre, podemos, ainda assim, aprofundar nosso desenvolvimento corpóreo-espiritual. Nosso processo de crescimento pode se dar não só na imersão comunitária, mas também na solitude. Silêncio: um dia deixamos a proteção da casa dos pais, mas, depois, também podemos nos isolar em nosso próprio deserto. Podemos nos recolher para parir novas ideias. Haverá prenúncio mais claro de um rito iniciático que o próprio recolhimento que o antecede?

Fico surpreso também ao reconhecer que o que nos leva, ora, ao recolhimento é uma pandemia que ataca o sistema respiratório. Este sistema é fisicamente separado do baixo abdômen pelo diafragma, indicando uma passagem. Na ascensão de nossa árvore da vida, partimos da solidez de pés e pernas; passamos pelas trocas líquidas abdominais; passamos pelas trocas aéreas da respiração; chegamos ao mundo etéreo das ideias guardadas no crânio. Aí, completa-se a duplicidade a que estamos atados: corpo-espírito. 

Fisicamente, o peito liga as partes mais baixas do tronco (incrível esta palavra para se referir a um corpo-árvore) à cabeça. Ou seja, aí  há um espaço intermediário entre a terra (pés e pernas), líquidos (abdômen) e éter (pensamento e imaginação). Se o ventre garante o nosso nascimento biológico (todos viemos da barriga de alguém, não?), os pulmões preparam a dimensão ontológica do ser: o parto que faremos de nós mesmos, o que pretendemos de nós mesmos.

Lembre-se que na expiração, humanos podem produzir fonemas e palavras. Ou seja,  a respiração viabiliza  aquilo que expressa a nós mesmos para além do corpo - nossa expressão, enfim, livre de nós. Isso significa que podemos, no ato de respirar, preparar os sentidos que daremos às coisas: o que vemos e como nomeamos. Respirar pode ser também um cuidado com o mundo.  

Quando formos sequestrados por pressões produtivistas, ansiedade e confusão mental, temos de lembrar a nós mesmos que a tarefa que esta pandemia nos pede não ė o deslocamento, não é a posse de territórios. A encomenda ė meditação. Muitas tradições meditativas partem justamente da concentração em nossa respiração, um desviar da atenção para o que nos parece automático. 

Porém, mais que isso, podemos meditar sobre o próprio ato: inspirar e expirar. Por ameaçar esta nossa capacidade de troca - insisto: entrada e saída gasosa que prepara o pensamento - a pandemia pode nos ajudar a reconhecer quais imagens estão associadas ao modo como respiramos. 

Àqueles e àquelas que creem, deve haver Deus nisso: somos fruto de um Sopro e podemos voltar a este momento em nossos próprios corpos, respirando simplesmente. Faceando o deserto em que estamos, poderemos, um dia, sair e reconhecer as nossas próprias cruzes. 

Em tempo: quando, por motivos econômicos, uma sociedade não dá o direito a que todas e todos estejam em casa, nega, nestes dias, o direito à respiração. Além da existência biológica, nega-lhes a oportunidade à meditação, ocupando cada uma e cada um até os limites da exaustão. Há um preço a se pagar por isso. Este preço, os pobres já estão pagando diariamente - há muito tempo! Cedo ou tarde, a conta chega para todas e todos nós.