Quarentena

De repente, uma sociedade orientada à produção, ao barulho, à auto-exposição, à adrenalina das redes teve que lidar com o vazio, com a falta de propósito, com o silêncio, com o recolhimento.

Dizem que foi possível descobrir que há crianças em casa querendo brincar.

Dizem que foi possível descobrir que a poluição esconde um lindo céu azul.

Dizem que foi possível descobrir que a tecnologia ajuda a declarar afeto e cuidar.

Dizem que foi possível descobrir que há profissionais de saúde vocacionados.

Dizem que foi possível descobrir que há lixeiros esmerados na limpeza das ruas.

Dizem que foi possível descobrir que há pobres. E que precisam de atenção pois, quando estão sozinhos, morremos todos.

Dizem que foi possível lembrar que muita gente acorda cedo para que a comida esteja sobre a mesa.

Dizem que foi possível descobrir que há tempo, mesmo quando há urgência.

Dizem que foi possível descobrir máscaras políticas caindo - mesmo quando, teatralmente, os poderosos as penduravam na orelha ou as usavam para esconder os olhos.

Dizem que foi possível descobrir que o bairro é tão importante quanto o planeta. Dizem que foi possível lembrar que respirar é milagre.

Dizem que foi possível descobrir que não existe projeto humano sem vida comunitária.

Houve medo e incerteza, claro. Houve perdas: nada explica o amor que parte. Mas nunca mais houve saudade do passado. Havia um mundo inteiro para ser inventado.

A gente tinha saudade do futuro! A gente tinha saudade do futuro!